"São Martinho de Tours: a santidade da dádiva", por José Miguel Sardica

Martinho de Tours nasceu na Panónia, uma província periférica do Império Romano (atual Hungria) em 316 d.C. O pai era um tribuno comandante de legiões romanas e iniciou-o na vida militar muito jovem, com 15 anos.

Mas o chamamento cristão já motivava a criança – e ainda antes de ter sido batizado, Martinho robusteceu a sua fé através de um milagre. Em Amiens, numa manhã nublada de vento e chuva, no outono de 337, cruzou-se com um mendigo que tiritava de frio. Não tendo esmola para lhe dar, despiu a sua capa, cortou-a ao meio com a sua espada e deu metade ao pobre. Segundo a lenda, esse gesto bondoso foi recompensado: as nuvens negras desapareceram no céu, o sol surgiu e o tempo ameno prolongou-se por três dias. Na noite seguinte, Jesus Cristo apareceu-lhe em visão trazendo aos ombros essa metade de capa e anunciando aos anjos que o rodeavam: “Foi Martinho que me revestiu deste manto”.

Batizado em Amiens em 339, Martinho deixou a vida militar para ser apenas “soldado de Cristo”. Santo Hilário, o bispo de Poitiers, ordenou-o diácono e presbítero, antes de o enviar, c. de 355, de regresso à terra de seus pais, para ali evangelizar os pagãos. Voltou à Gália c. de 361, para fundar o Mosteiro de Ligugé, que depressa se tornou um dos polos dinamizadores do monaquismo na Europa Ocidental. Foi elevado a bispo de Tours, em 371, um múnus durante o qual erigiu outro Mosteiro, de Marmoutier, nas margens do rio Loire, onde formou inúmeros missionários para o auxiliarem nas tarefas de evangelização. Multiplicou viagens apostólicas, fundou paróquias rurais, igrejas, mosteiros e escolas, numa vasta obra que lhe valeu a designação de “apóstolo da Gália” ou “Pai da Gália” – além de a devoção popular ter feito dele o “padroeiro dos mendigos”. Morreu com 81 anos, a 8 de novembro de 397, tendo sido sepultado três dias depois, a 11 de novembro, desde então a data da sua festa litúrgica. A sua biografia, escrita por Sulpício Severo, tornou-o conhecido por todo o império romano, cedo transformando a cidade de Tours num centro de peregrinação onde acorriam gentes de todos os países para venerarem a sua memória.

Martinho de Tours tornou-se o primeiro Santo não mártir reconhecido pela Igreja e um dos mais populares nos séculos da Europa medieval. O dia das suas exéquias fúnebres passou a ser comemorado como Dia de São Martinho, não só em França, como em todo o mundo, com ritos que variam de país para país. Em Portugal, é tradição celebrar a data com um “magusto”, onde se assam castanhas e se bebe água-pé ou jeropiga, ou com a abertura, nas adegas aldeãs, do vinho novo, depois do tempo das vindimas. De acordo com os antropólogos portugueses, o “magusto” nasceu como ritual de comemoração do Dia de Todos os Santos, quando a refeição de castanhas e licores era colocada na mesa para que os mortos de cada família se pudessem alimentar. Talvez esta prática fosse até anterior à vida e ao exemplo de São Martinho; em todo o caso, perpetuou-se até hoje cristianizada pelo culto de São Martinho a 11 de novembro e pelos três dias que, em torno da data da sua morte, reatualizam o milagre de um curto verão no calendário do outono.

Em 2007, na alocução do Ângelus no Dia de São Martinho, o Papa Bento XVI explicou a importância de lembrar no presente o venerável santo das Gálias: o seu “gesto caritativo”, partilhando o que tinha “por amor ao próximo”, era o mesmo de Cristo “a multiplicar os pães para as multidões famintas”. E “vestir os nus” segue sendo uma das catorze obras de Misericórdia que devem pontuar a vida de todos os cristãos.