Entrevista a António Almeida Dias - “Se o privado não puder ser diferente, não tem sentido existir”
António Almeida Dias Novo presidente da associação de universidades privadas defende parcerias público-privadas e fusões entre as instituições mais pequenas Samuel Silva António Almeida Dias, 62 anos, é médico, especializado em doenças do sangue, mas não exerce a profissão há longos anos.
Depois de ter sido professor na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, assumiu, há mais de 20 anos, a liderança da CESPU — Cooperativa de Ensino Superior Politécnico e Universitário, uma instituição privada especializada em cursos da área da saúde, com pólos em Paredes, Pena fiel e Vila Nova de Famalicão. Acaba de assumir a liderança da Associação Portuguesa de Ensino Superior Privado (APESP), com uma equipa que é sobretudo de continuidade face ao anterior presidente, João Redondo. “Chegou a altura de utilizarmos os palcos em que estamos de uma forma diferente”, antecipa.
O Ministério da Ciência e Ensino Superior apresentou recentemente, depois de vários avanços e recuos, um projecto de regime jurídico para a contratação de docentes no ensino superior privado. Como avalia a APESP a proposta da tutela? Desde 1989 que estamos à espera que haja essa regulação. No nosso entender, há aspectos em que não deve haver diferença rigorosamente nenhuma entre o ensino estatal e o ensino privado: as categorias dos professores, o processo de qualificação, com a exigência de um doutoramento, ou a existência de provas de agregação, por exemplo.
Mas o Estado não pode querer regular o sector privado como regula o sector que financia, exigindo determinado tipo de situações, neste caso em relação às questões contratuais.
A regulação do sector público e do privado tem de ser diferente?
O Estado tem de admitir a diferença, porque há uma questão de base fundamental que é o facto de o financiamento ser diferente. As instituições não têm de ser fotocópia umas das outras. Se o privado não puder ser diferente, não tem sentido existir sector privado. Só têm de ser iguais as exigências de qualidade e que haja um bom produto, que é termos bons profissionais. O Estado não tem motivo nenhum para desconfiar do sector privado.
Que serviço é que o privado podia prestar que tornasse benéfica também para o Estado essa colaboração?
Serviço de proximidade de oferta. Em vez de andarmos a criar estabelecimentos de ensino onde já existem, porque não se fazem acordos e protocolos que aproveitem o que já existe no terreno e, com isso, modificar a oferta? Privados pedem oportunidades iguais “País perde 250 milhões de euros com alunos de Medicina no estrangeiro” António Almeida Dias lembra que várias instituições do sector privado “já se candidataram e que querem continuar a candidatar-se a ter um curso de Medicina”. O ministro do Ensino Superior tem insistido na necessidade de formar mais médicos e até anteviu a possibilidade de abrirem novos cursos de Medicina.
É possível que isso aconteça em universidades privadas, como já aconteceu com a Universidade Católica?
Li uma entrevista recente do senhor ministro [ao Expresso] e fiquei com a ideia de que se está a antecipar à Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES), o que é uma coisa fantástica. Dos três projectos que o senhor ministro antecipou poderem ter sucesso dentro de dois ou três anos, nenhum deles está na agência para ser avaliado. Falamos das universidades de Aveiro, Évora e Trás-os-Montes e Alto Douro. Nenhum desses projectos está na A3ES. Além disso, há várias instituições do sector privado que já se candidataram e que querem continuar a candidatar-se a ter um curso de Medicina. Algumas adquiriram hospitais [a CESPU é proprietária dos hospitais particulares de Paredes e Barcelos e a Universidade Fernando Pessoa tem um hospital-escola em Gondomar], contrataram pessoas qualificadas para esse fim. Não cai bem que antecipadamente se esteja a dizer que existem três instituições que serão aquelas com condições para poder abrir o curso de Medicina. Isto até é injusto para a A3ES, porque parece que aqueles três cursos terão um patrocínio político. Mesmo que os projectos sejam bons, já dificilmente vão livrar-se desse ónus.
São necessários mais cursos de Medicina em Portugal?
Eu só percebo que exista a pressão dos numerus clausus porque Medicina é um curso caro e, se o Estado vai investir na formação, então essas pessoas têm de exercer a profissão. Mas ter um curso não significa necessariamente exercer a profissão. Não tem que ver com haver emprego ou fazer especialidade, mais a mais num mundo globalizado, em que as pessoas podem mudar de país com facilidade. Além disso, toda a gente percebeu que o velho argumento de que há médicos a mais não é verdadeiro.
Foi preciso vir uma desgraça para que as pessoas percebessem isso. Outro aspecto importante: pode-se evitar que os portugueses vão tirar o curso a outro lado? Não. Esses médicos depois voltam a Portugal para fazer o acesso à especialidade. Exactamente. Portanto, não se deixa abrir aqui, mas não se pode impedir que vão para fora, nomeadamente para Espanha, onde há 18 faculdades privadas de Medicina, com muitos portugueses. Por cada 1000 portugueses que tiram o curso de Medicina lá fora, há 220 a 250 milhões de euros que saem do país, entre o valor pago em propinas, despesas de alojamento, alimentação e deslocação [nota: são cerca de 400 os médicos formados em universidades estrangeiras que todos os anos fazem o acesso ao exame de especialidade]. Metade destes médicos fica lá fora, porque têm melhor emprego ou vão criando laços pessoais. Portanto, o país perde dinheiro e perde recursos que começou a formar.
Não seria mais lógico termos cursos a funcionar em Portugal, com qualidade, e que dessem resposta a estes alunos e também pudessem captar estudantes de fora? A Ordem dos Médicos tem questionado a capacidade dos hospitais e centros de saúde para acolher esses médicos em formação. Esse não é um problema?
Porque é que isso não se coloca em relação à Enfermagem, que tem tantas ou mais horas de formação em ambiente real de trabalho?Entretanto, foi aprovado um curso de Medicina na Universidade Católica, que tem contextos próprios, mas é um sinal positivo de abertura ao sector não estatal. O discurso do senhor ministro também não parece colocar a aprovação na Católica como um caso único.
Nota: Pode ler o artigo na íntegra na edição impressa do Público de 18 de julho de 2021.
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